sábado, 19 de abril de 2014

"Van Houten,


Sou uma pessoa boa, mas um escritor de merda. Você é uma pessoa de merda, mas um bom escritor. Nós formaríamos uma bela equipe. Não quero lhe pedir nenhum favor, mas, se tiver tempo - e pelo que vi, você tem tempo de sobra -, fiquei me perguntando se poderia escrever um elogio fúnebre para a Hazel. Tenho algumas anotações e tudo mais, mas se você pudesse transformá-las num texto completo e coerente, e tal... Ou então só me dizer o que eu deveria escrever de forma diferente.
O bom da Hazel é o seguinte: quase todo mundo é obcecado por deixar uma marca no mundo. Transmitir um legado. Sobreviver à morte. Todos queremos ser lembrados. Eu também. É isso o que me incomoda mais, ser mais uma vítima esquecida na guerra milenar e inglória contra a doença.
Eu quero deixar uma marca.
Mas, Van Houten: as marcas que os seres humanos deixam são, com frequência, cicatrizes. Você constrói um shopping center medonho ou dá um golpe de Estado ou tenta se tornar um astro do rock e pensa: "Eles vão se lembrar de mim agora", mas: (a) eles não se lembram de você, e (b) tudo o que você deixa para trás são mais cicatrizes. Seu golpe de Estado se transforma numa ditadura. Seu shopping center acaba dando prejuízo.
(Tá, talvez eu não seja um escritor tão de merda assim. Mas não consigo organizar minhas ideias, Van Houten. Meus pensamentos são estrelas que eu não consigo arrumar em constelações.)
Nós somos como um bando de cães mijando em hidrantes. Nós envenenamos as água subterrâneas com nosso mijo tóxico, marcando tudo como MEU numa tentativa ridícula de sobreviver à morte. Eu não consigo parar de mijar em hidrantes. Sei que é tolice e inútil - epicamente inútil em meu estado atual -, mas sou um animal como qualquer outro.
A Hazel é diferente. Ela anda suavemente, meu velho. Ela anda suavemente sobre a Terra. A Hazel sabe qual é a verdade: é tão provável que nós não consigamos ferir o universo quanto é provável que nós o ajudemos, e é improvável que façamos qualquer uma dessas duas coisas.
As pessoas vão dizer que é triste o fato de ela deixar uma cicatriz menor, que menos pessoas se lembrem dela, que ela tenha sido muito amada mas não por muita gente. Mas isso não é triste, Van Houten. É triunfante. É heroico.Não é esse o verdadeiro heroísmo? Como dizem os médicos: em primeiro lugar, não cause dano ou mal a alguém.
Os verdadeiros heróis, no final das contas, não são as pessoas que realizam certas coisas; os verdadeiros heróis são as pessoas que REPARAM nas coisas. O cara que inventou a vacina contra a varíola não inventou nada, na verdade. Ele só reparou que as pessoas que tinham varíola bovina não pegavam varíola.
Depois que a minha tomografia acendeu como uma árvore de natal, eu entrei furtivamente na UTI e vi a Hazel quando ainda estava inconsciente. Entrei andando atrás de uma enfermeira de crachá e consegui me sentar ao lado da Hazel por, tipo, uns dez minutos antes de ser pego. Eu realmente achei que ela fosse morrer antes que eu pudesse lhe contar que também ia morrer. Foi brutal: o arengar mecanizado incessante da terapia intensiva. Havia uma água cancerosa escura pingando no peito dela. Os olhos fechados. Entubada. Mas a mão dela ainda era a mão dela, ainda quente, as unhas pintadas de um azul-escuro quase preto, e eu simplesmente segurei sua mão e tentei imaginar o mundo sem nós e por mais ou menos um segundo fui uma pessoa boa o suficiente para torcer que ela morresse e nunca ficasse sabendo que eu também ia morrer. Mas aí eu quis mais tempo para que pudéssemos nos apaixonar. Creio que meu desejo foi realizado. Eu deixei a minha cicatriz.
Um enfermeiro chegou e me disse que eu precisava me retirar, que visitas não eram permitidas, e eu perguntei se ela estava melhorando. O cara disse: "Ela ainda está fazendo água." Benção do deserto, maldição do oceano.
O que mais? Ela é tão linda! Não me canso de olhar para ela. Não me preocupo se ela é mais inteligente que eu: sei que é. É engraçada sem nunca ser má. Eu a amo. Sou muito sortudo por amá-la, Van Houten. Não dá para escolher se você vai ou não se ferir neste mundo, meu velho, mas é possível escolher quem vai feri-lo. Eu aceito as minhas escolhas. 
Espero que a Hazel aceite as dela.

Eu aceito, Augustus.

Eu aceito."





Decide reler 'A culpa da estrelas' ontem. Sabia que seria uma péssima ideia porque meu emocional quebraria em caquinhos tão minúsculos que seria impossível remontá-los em um dia. Ou dois. Ou três. Provavelmente vai levar essa semana inteira. Mas mesmo assim eu li. Talvez a teimosia seja o melhor dos meus defeitos.
É incrível como ver uma pessoa lutando contra um câncer ou qualquer outra doença torna qualquer probleminha ou drama ABSURDAMENTE ridículo. Absurdamente em letras maiúsculas porque chega a ser um crime comparar qualquer coisinha assim a isso (a menos que se tenha uma doença crônica). 
Levei meses (na verdade quase um ano) pra voltar a ser uma pessoa feliz porque deixei tomar conta da minha vida problemas que nada tinham a ver comigo, e por me meter em tais problemas acabei criando o meu próprio e levando uma surra na cara a cada dia que passa por culpa deles. Eu estou feliz agora, não me leve a mal, mas escrever isso e relembrar dói tanto que chega a ser cruel voltar a tocar num assunto que causou tanta aflição, desgraça e infelicidade. Caralho, eu só quero viver a minha vida. Vejo como foi dramático tratar isso um problema mas para mim foi um problema, e ainda é, só cansei de ficar no papel de vítima e decidi que se eu não fizer nada por mim, ninguém no mundo vai fazer, porque apesar de existir amigos e família, colegas de trabalhos, vizinhos, o cobrador do seu ônibus ou a recepcionista do prédio que você trabalha que todos os dias te deseja uma "boa tarde", a gente morre sozinho. Vai pro barro sozinho. 
Somos todos bombas previamente ativadas, porque nunca sabemos quando vai chegar a nossa hora. Vamos estourar, morrer, causar problemas e tristeza em muita gente mas depois deu. Você vai ser simplesmente apenas alguma coisa enterrada a sete palmos abaixo da terra virando adubo. E foi por esse motivo que eu decidi sair do papel de vítima, e foi ótimo. Saia do papel de vítima, simplesmente saia e faço algo por você mesmo (é bom imaginar que estou falando com alguém).
Eu talvez devesse ter coragem de falar, mas coragem maior é não ter coragem de fazê-lo.

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